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Descarbonizar, desracializar, descolonizar e democratizar, a urgência de atualizar e cumprir Abril

O advento do 25 de Abril inaugurava uma era de tripla rutura com o colonialismo, o fascismo e a pobreza endémica, enquanto anunciava um horizonte de esperança pela emancipação socioeconómica da maioria do povo, com a melhoria das suas condições de vida, vulgarmente chamada desenvolvimento económico. Os famosos “3D’s” (descolonizar, democratizar e desenvolver) carregavam assim a promessa de um futuro melhor. Mas nem todos os sonhos de Abril floresceram como os cravos que carregavam essa imensa vontade de um futuro risonho. Mesmo aqueles que iniciaram uma indução de nobres e bonitas vontades e desejos políticos em rutura com os horrores do fascismo e do colonialismo não conseguiram gerar as pétalas de uma democracia plenamente inclusiva. 

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Infelizmente, nenhum ‘D’ do tríptico desejo se cumpriu integralmente. Na verdade, o processo democrático foi-se alavancando num modelo económico de acumulação primitiva, onde se agudizou a transferência de rendimentos do trabalho para o capital e em que a pessoa não está no centro da política, porque a acumulação de riqueza é preterida em relação à dignidade humana. Assim, face a uma democracia inacabada e capturada pela lógica de uma política económica fundamentalmente acumulacionista que encontra a sua raiz na matriz colonial da economia portuguesa, não foi possível nem democratizar, nem desenvolver e, muito menos, descolonizar. 

O país, formatado por um imaginário de uma quimérica grandeza imperial, ficou refém de um modelo económico herdado da empresa colonial racista, em que o extrativismo voraz é o elemento essencial do modo de produção de riquezas. Tal situação instala a sociedade e a economia numa colonialidade sistémica, âncora do racialismo e da hétero-normatividade patriarcal que alimenta o ressurgimento e fortalecimento dos populismos neofascistas.

50 anos depois, perto de 50 fascistas assumidos e muitas dezenas de outros arautos de um conservadorismo nacionalista bacoco foram eleitos deputados na Assembleia da República. 50 anos depois, em vez de cumprir Abril, a disputa democrática volta a reinscrever o fascismo como alternativa política.

50 anos depois, urge não só revisitar as promessas, mas sobretudo, reatualizá-las para cumprir os sonhos de Abril. Perante a ameaça fascista e racista, bem como a crise ambiental resultante do modelo extrativista de produção capitalista, que aumenta a vulnerabilidade social e económica das pessoas mais carenciadas e daquelas que são mais expostas a todas as formas de discriminação, impõe-se uma refundação que atualize a formulação de alternativas políticas para promover a justiça racial, social e climática. 

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Descarbonizar o modelo económico é a mais premente atualização das promessas de Abril para enfrentar a catástrofe ambiental em curso, salvar o planeta e a humanidade e garantir a sustentabilidade de um projeto de sociedade viável. Descarbonizar é romper com desenvolvimentismo, uma ideologia de saque e sobre-exploração. Descarbonizar é romper com a cristalização cultural da ideologia da posse como única forma de governo do mundo e dos seus recursos. A obsessão pela posse tem como sucedâneo a vontade de extração máxima de proveito, o que conduz inevitavelmente à sobre-exploração dos recursos naturais e das pessoas mais pobres, originando uma crise de sustentabilidade. Assim, a crise climática agudiza as desigualdades, provoca deslocações forçadas de milhões de pessoas e aumenta as vulnerabilidades dos mais frágeis da sociedade, mormente das pessoas racializadas. As dramáticas consequências da catástrofe ambiental, como bem comprovou a pandemia de Covid-19, fustigam mais pessoas pobres e racializadas. É urgente descarbonizar, porque sem justiça climática não há justiça racial e vice-versa.

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Desracializar os imaginários e as práticas políticas é superar o racialismo como modelo de relacionamento entre povos e culturas, destruir o supremacismo e zelar para que a diferença étnica e cultural não se ossifique na ideologia do ódio, principal potenciador de violências. Desracializar é, no fundo, fazer da diferença uma riqueza e não uma tara. Desracializar é, portanto, sair da obsessão neurótica das pertenças exclusivas, seletivas, excludentes e hierarquizantes.

É urgente desracializar, porque urge essencialmente colocar a pessoa à frente da raça, ou seja, colocar a humanidade acima da racialidade. 

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Descolonizar impõe romper com a subliminar vontade de passado que faz do elogio à gesta imperial e do silêncio sobre as vilanias da história colonial – nomeadamente a Escravatura – e os acontecimentos que estiveram na origem do 25 de Abril, um modus operandi hegemónico. Portanto, descolonizar impõe uma rutura efetiva com as retóricas e práticas de legitimação das consequências do colonialismo donde emanam as bases do racismo estrutural que ainda permeia as relações na nossa sociedade. Descolonizar passa por descolonizar uma conceção propriamente limitada da ideia vigente de descolonização, interrogando os consensos e os privilégios herdados da ordem colonial capitalista, mas também desafiando a hegemonia da produção de saberes e conhecimentos que recicla e mantém narrativas e práticas racistas.

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Democratizar é muito mais do que assegurar uma coreografia institucional e o governo dos mecanismos da disputa política. Democratizar é recusar a normalização do fascismo, é combater a ideia de que há suficiente maturidade democrática para acomodar a pretensão do fascismo em se tornar uma alternativa. Democratizar é não aceitar a equiparação de uma ideologia da morte e do ódio com projetos políticos de emancipação e de liberdade. Cumprir Abril é ainda continuar a desocultar todas as opressões e formas de discriminação (raciais, machistas, homófobas e sexistas). Cumprir Abril é romper com a democracia de baixa intensidade que perpetua os privilégios de classe, de raça e de género. É instituir um antirracismo que só pode ser interseccional e totalmente mobilizado na luta contra a lgbtqfobia, o machismo e o racismo. 

50 anos depois de um desabrochar de esperanças por futuros melhores, a tarefa de cumprir Abril por uma sociedade livre, plural e inclusiva passa por descarbonizar a economia, descolonizar imaginários e narrativas, desracializar teorias e práticas e democratizar a disputa e partilha de poderes reais e simbólicos.

Mamadou Ba, 22-04-2024

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