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FESTAS, HUMOR E PRECONCEITO

Neste período de festas académicas, é comum utilizar a sátira como recurso expressivo de denúncia do que se entende dever ser corrigido no meio social em que os seus autores se inserem. Pode visar práticas duma instituição ou alargar-se ao âmbito da sociedade. Pode dirigir-se aos responsáveis, por vezes difusos, pelos atos criticados ou voltar-se para quem parece ficar mais visível na fotografia. A sátira joga com o humor e, como toda a linguagem – utilize ela a escrita, o som ou a imagem – nunca é inocente, designadamente quando constitui determinadas pessoas, atitudes ou contextos bem definidos como alvo da sua mensagem crítica.
Nos últimos dias, dois acontecimentos foram largamente noticiados, pela polémica que desencadearam, ambos no contexto de festas académicas. Em Coimbra, um carro do cortejo da Queima das Fitas esteve projetado para exibir como título a palavra “Alcoholocausto”. Se a intenção dos estudantes era criticar o estado caótico do ensino superior, conforme foi afirmado, não parece muito lógico o parentesco semântico entre esse conceito e ‘a marca’ escolhida. O termo ‘holocausto’ – ainda por cima aglutinado com álcohol – com toda a carga dramática que a história do século XX associou a uma tremenda perseguição e morticínio, de motivação racista, não poderia ser utilizado numa qualquer crítica, por mais destruidora que se pretendesse, à instituição universitária. Assim se pronunciaram, num abaixo-assinado, várias dezenas de professores e professoras da Faculdade de Letras, que denunciaram a ligeireza com que estes alunos e alunas de História estavam a utilizar esta palavra. No mesmo sentido, surgiu uma petição assinada por algumas centenas de cidadãs e cidadãos, promovida por um aluno de doutoramento. Após a intervenção do diretor da Faculdade em diálogo com os e as responsáveis, o título foi retirado do carro, mas mantiveram-se algumas marcas que manifestavam a não aceitação deste juízo crítico sobre a sua mensagem, assimilando-o a ato de censura, apresentando-se alguns/mas jovens, no cortejo, com uma mordaça. De assinalar que a ideia inicial era reproduzir um comboio [imagem indissociável dos campos de concentração nazis] e que, uns meses antes, o mesmo grupo se tinha fotografado com indumentárias insinuando prisioneiros judeus e guardas nazis. De par com isso, foram distribuídos uns folhetos no cortejo, com informações (algumas erradas) sobre esse acontecimento histórico… provavelmente com a intenção de mostrar que estavam dentro do assunto.
Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, surgiu um caixote com pedras com o seguinte letreiro: “Grátis se for para atirar a um ‘zuca’ (que passou à frente no mestrado).” Isto provocou uma reação forte de estudantes brasileiros, que fizeram uma manifestação em que podia ler-se, entre outras coisas: “Não é piada é xenofobia”. As autoridades da Faculdade manifestaram-se contra quaisquer ações ofensivas de alunos da Faculdade e a Reitoria afirmou abrir um processo disciplinar aos autores do sucedido.
Estes dois atos têm uma marca comum: pretendendo usar a veia satírica para denunciar práticas que não aceitam, estes/as jovens socorrem-se de referências cujo sentido, no mínimo, não questionam, incorrendo, na mais favorável das interpretações, na sua utilização acrítica. Contudo, mesmo assim, não deixam de estar sujeitos a que a sua mensagem seja julgada como atitude cúmplice de toda a agressividade que essas palavras/discursos/contextos transportam. O caso torna-se ainda mais grave se, depois de alertados/as, se comportam como vítimas duma qualquer censura e não reconhecem que, na realidade, teimam em comportar-se como pessoas racistas e xenófobas, na medida em que atribuem e circunscrevem os atos/as situações que criticam a uma determinada comunidade ou ao imaginário que dela foi criado ao longo da história – o que é efetivamente insultuoso.
O racismo e a xenofobia visam mesmo isso: naturalizar atitudes, comportamentos e juízos de valor, atribuindo-os a determinados grupos predefinidos e transformando-os em marcas distintivas essenciais das pessoas que os integram. Chama-se a isso criar e alimentar o preconceito. Os caminhos para lá chegar são variados. Um deles pode ser o humor acrítico.

Coimbra, 10 de Maio de 2019

José João Lucas
SOS Racismo

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